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Novo livro de Lucrecia Zappi reproduz o ruído do bairro onde ela cresceu

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Quando era menina, a escritora Lucrecia Zappi gostava de ficar debruçada na janela ouvindo as conversas das travestis que desfilavam nas esquinas próximas à Praça Rotary, na Vila Buarque, no centro de São Paulo. Lucrecia morava no 6º andar do Jacobina, um prédio bege, com venezianas de madeira e colunas neoclássicas. De lá, ouvia tudo o que acontecia na rua. Um dia, ouviu gritos. Era uma briga. Duas travestis se engalfinhavam na esquina. Uma delas sacou um canivete e cortou a orelha da outra. “Uma delas gritava: ‘Minha orelha! Eu te mato, sua filha da p...!’. E eu vi a orelha caída ali na esquina”, diz Lucrecia, com uma voz rouca que alterna o tempo todo entre o sossego e a animação. “Eu era uma criança que gostava de conversar com estranhos, de ouvir os cochichos dos travestis, o ruído da cidade. Foi assim que  aprendi a escrever diálogos.”

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Lucrecia capricha nos diálogos de Acre (Todavia, 208 páginas, R$ 44,90), seu segundo romance. Ela dispensa os sinais gráficos que indicam as falas dos personagens, mas a ausência de aspas e travessões não impede o leitor de reconhecer de imediato a voz inconfundível de cada personagem, como quem ouve atrás da porta (ou debruçado na janela do 6º andar). Uma orelha decepada volta e meia aparece nos diálogos. Alguém sempre se lembra de uma briga de adolescentes na Praça Rotary, há 30 anos, em que Nelson, um dos protagonistas da história, arrancou a orelha de outro menino. A polícia apareceu e a mãe o mandou para Santos. Lá, ele conhece Oscar, o narrador, outro menino da Vila Buarque exilado na praia, e Marcela, uma caiçara esfíngica que se envolve com os paulistanos, mas acaba se casando com Oscar. O casal vai viver em São Paulo, num apartamento com vista para a Praça Rotary.

Novo livro de Lucrecia Zappi reproduz o ruído do bairro onde ela cresceu

 

 

 

 

 

 

 

Lucrecia cresceu na Vila Buarque, mas nasceu em Buenos Aires, na Argentina, em 1972. Aos 4 anos, veio com a família para o Brasil – exilados da ditadura argentina. O pai era simpatizante do Partido Comunista. Em São Paulo, a família foi morar no Santa Rita, o prédio bordô com varandas arredondadas que estampa a capa de Acre. Alguns anos mais tarde, a família se mudou para o Jacobina, a metros dali, onde foi vizinha do cineasta Anselmo Duarte, de O pagador de promessas. “O Anselmo era como se fosse nosso tio. A gente brincava com a Palma de Ouro e ouvia ele contar como tinha ganhado aquele prêmio”, diz Lucrecia, enquanto belisca um bolo de nozes numa confeitaria da Vila Buarque, a mesma a que ia para tomar sorvete de pistache quando menina. Aos 16 anos, ela se mudou para o México com o pai. Da Cidade do México, foi para a Holanda, onde estudou artes plásticas. Voltou ao Brasil e trabalhou como repórter. Há dez anos vive em Nova York, onde colabora com a Luhring Augustine, a galeria de arte do marido americano. Em 2016, organizou a exposição Empty house casa vazia,  sobre o neoconcretismo brasileiro – deu no The New York Times.

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Em Nova York, Lucrecia se assumiu escritora. Seu primeiro romance, Onça preta (Benvirá, 240 páginas, R$ 39,90), publicado em 2013, nasceu de um mestrado em escrita criativa. Dos professores, Lucrecia ouviu um conselho inusitado: não ter medo de imitar os autores que admirava. “Imitava Kafka. Escrevi uma paródia de A metamorfose em que um cara acorda preso num quadro velho que começa a descascar e dá uma coceira infernal nele”, diz Lucrecia, que não contém o riso ao descrever um enredo tão insólito. “O título era ‘Eczema’.” Outro conselho: escrever sobre sua obsessão. Lucrecia tem um punhado delas: figuras desbravadoras de territórios inóspitos – seja o sertão nordestino ou o centro de São Paulo – e a fala. Em Onça preta, a desbravadora é Beatriz, moça calada, botânica aprendiz, que sai em busca do pai que nunca conheceu na Chapada Diamantina.

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A ÉPOCA, Lucrecia não citou o desconhecido como uma obsessão, mas ele está lá, escondido em seus livros. No romance de estreia, há o pai desconhecido de Beatriz e a onça preta que vive escondida numa das cavernas da região. Em Acre, o desconhecido toma a forma de Nelson, o namoradinho encrenqueiro da Marcela adolescente. Ele volta para a Vila Buarque depois de 30 anos no Acre. Ninguém sabe direito por que ele foi embora e por que voltou – e por que a volta dele sensibiliza tanto Marcela. Oscar desconfia de tudo, mas é incapaz de decifrar o que se passa na cabeça da mulher ou nos cantos escondidos do bairro. A linguagem de Acre é lírica, mas seca como um agosto em São Paulo. As descrições ásperas do barulho do elevador, do encardido das ruas, do sol estalando o piso de sinteco contribuem para o clima soturno, quase asfixiante, do livro. “É para combinar com a Santa Casa, esse castelinho gótico no meio da Vila Buarque”, diz Lucrecia, que volta e meia desvia o olhar para fora da confeitaria, distraída pelo ruído da cidade.



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