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Pequeno inventário dos muros invisíveis

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"O que quer dizer ‘desenhar’? Como se consegue desenhar? Essa ação consiste em abrir caminho através de um muro de ferro que parece se interpor entre o que se sente e o que é possível realizar. Como fazer para atravessar esse muro, se de nada adianta golpeá-lo com força? É preciso corroê-lo lenta e pacientemente com uma lima, ao menos na minha opinião.”
Vincent van Gogh (1853-1890)

Se você disser que Van Gogh, além de um gênio da pintura, era um repositório ambulante de sintomas de esquizofrenia, eu é que não vou discordar. Mas, mesmo assim, mesmo com o furor alucinatório das palavras que ele escreveu há mais de um século, numa carta ao irmão, devo argumentar que ele estava certo e não poderia ser mais atual. A descrição que ele faz do “muro de ferro”, o muro que é preciso corroer “pacientemente”, é um retrato impressionante (e impressionista) das prisões que encarceram o pensamento político do nosso tempo. Há muros emparedando a imaginação – e não existe lima que dê conta de corroê-los, assim como não existem mais olhos capazes de vê-los.

É verdade que vivemos num mundo globalizado, como uns e outros gostam de festejar. É verdade que os aeroportos nos deixam ir de um lado para outro sem maiores obstáculos e que as distâncias geográficas deixaram de ser um problema. Os seres humanos vão para lá e para cá, tudo isso é verdade, mas não saem de suas armaduras de paredes espessas, não saem de seus escafandros imaginários, de suas prisões portáteis. Nem mesmo na internet os sujeitos se libertam de suas clausuras ideológicas.

Cada qual se aconchega dentro de seu casulo blindado, feito de ideias antigas, carcomidas e inflexíveis. Presos em seus fanatismos, os habitantes desse tal de “mundo contemporâneo” perambulam por aí entrincheirados em torno de si próprios. Perderam a capacidade de ouvir outros argumentos. Não sabem conversar. Estão condenados às próprias sombras, aos próprios fantasmas. Para os velozes viajantes do século XXI, nada é mais improvável do que um encontro.

Não existe sociedade em rede. O que existe são muralhas em rede. Umas poucas são visíveis e, por serem visíveis, ficam mais fáceis de entender. Comecemos por elas, pois as muralhas visíveis servem de modelo para as invisíveis, que são as mais opressoras.

Dos muros que pertencem ao pequeno grupo dos visíveis, o muro de Berlim foi o modelo mais trágico. De um dia para o outro, dividiu famílias ao meio e obrigou os parentes segregados a esperar décadas pela chance de se reverem. Em nossos dias, outro símbolo igualmente forte é o muro do México, cuja visibilidade vem sendo turbinada pela fanfarronice de Donald Trump. Há incontáveis outros muros visíveis, como as cercas eletrificadas dos condomínios fechados, as catracas vigiadas por seguranças armados e a desigualdade social. Todos esses são fáceis de ver e de entender.

Os mais intrigantes e preocupantes, porém, são os invisíveis. Por vezes, eles são mais cômicos do que trágicos. Para nós, brasileiros, o caso mais folclórico é o muro do PSDB. Embora invisível, tornou-se quase palpável, tamanha a notoriedade que alcançou. Não tem um único centímetro de alicerce concreto, mas tem quilômetros de largura. É lá em cima dele que moram os tucanos.

Ainda na seara da política nacional, não podem passar sem registro os militantes voluntariosos que dão cabeçadas em paredes que só eles veem, espatifando as próprias ideias e nada mais. São brasileiros, não desistem nunca, e também não incomodam.

Os muros invisíveis que realmente preo­cupam não são engraçados, mas brutais. Vêm segregando amigos, cindindo famílias, desmanchando amores e derretendo casamentos. Com a polarização do debate público, a política virou fanatismo religioso e, com sua lâmina estúpida, retalha os afetos, produzindo rupturas traumáticas e pequenos (ou grandes) desastres pessoais.

>> Mais colunas de Eugênio Bucci

Antes, os aparelhos autoritários precisavam de polícias políticas para exterminar os dissidentes. Foi assim com o getulismo, no Brasil, o stalinismo, no Leste Europeu, ou o macarthismo, nos Estados Unidos, Hoje, cada um é a polícia política de si mesmo ou de seu grupelho. Os muros invisíveis, assentados na intolerância opaca, isolam as pessoas em turmas cada vez menores, em igrejinhas enfezadas, sedentas de sangue infiel. Essas igrejinhas vivem de patrulhar-se umas às outras.

Ah, como seria bom se outros loucos como Vincent van Gogh estivessem por aqui. Ah, como faltam cores no nosso mundo de ideologias mortas, muradas e incomunicáveis. Como ficou difícil desenhar, imaginar e pensar. Ao menos na minha opinião.



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