Um carro destruído e tombado, vigas de trilhos espetadas, pilhas de pneus recheados com cimento e geladeiras fincadas no chão com concreto fecham uma rua da entrada do Complexo do Chapadão, um aglomerado de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ali do lado, na primeira ladeira de acesso ao Complexo da Pedreira, o bloqueio é feito por um arranjo mais tosco, um lixão formado por colchões velhos, sofás rasgados, poltronas, carcaças de televisão e pedaços de pau. Em outras ruas há sinais mais elaborados e hostis, como trincheiras profundas cavadas no asfalto, que deixam espaço na lateral apenas para carros pequenos passarem rente ao meio-fio numa rua de comércio. Em um muro ao lado está pichada a frase “Tropa do Enguiça Blindado”, uma tirada de humor e atrevimento dos responsáveis por tais obras – eles mesmos, os traficantes.
Comandante das operações de guerra no Chapadão e na Pedreira, o major Márcio Alexandre trabalhou pela primeira vez na região de 2010 a 2013. Quando voltou ao policiamento na área, em 2016, levou um susto. Barricadas assim não eram vistas desde 2010 no Complexo do Alemão, o quartel-general do tráfico retomado pela polícia com a ajuda de tanques da Marinha. Fechar ruas, dificultar acessos, tomar um território do país para o crime era uma prática usada antes da instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em favelas estratégicas. Mas os traficantes do Alemão se refugiaram no Chapadão e na Pedreira. Seguros de que a polícia vive um refluxo pela crise financeira do estado, eles demarcaram um território para si. O passado violento está de volta.
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Separados por um ramal de ferrovia, os dois morros agora são dominados por facções inimigas. O Comando Vermelho dá as cartas no Chapadão, enquanto a Pedreira está nas mãos dos Amigos dos Amigos (ADA), bando que se aproximou do Primeiro Comando da Capital, o PCC, de São Paulo. O plano inicial era tocar o comércio de drogas, mas logo surgiu outra lucrativa frente criminosa, a do roubo de cargas. A história começou quando um ladrão de residências da Zona Sul, Celso Pinheiro Pimenta, o Playboy, assumiu o tráfico na Pedreira e levou membros de sua facção para o ramo de assaltos a caminhões. No Morro do Chapadão, o Comando Vermelho copiou a estratégia. “A gente já identificava ali um grande problema”, diz o coronel Robson Rodrigues, ex-chefe do Estado- Maior da PM e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Playboy foi morto em 2015, mas o ramo de negócio prosperou.
O caminhoneiro A., de 36 anos, nove anos de profissão, seguia pela Avenida Brasil, a principal via de acesso ao Rio de Janeiro, com uma carreta cheia de óleo lubrificante por volta das 20 horas, em 31 de julho. Tentou desviar de um Astra preto parado à frente. Mas era uma armadilha para fazê-lo sair da faixa seletiva. Imediatamente um Fiesta prata com homens armados com pistolas parou a seu lado. “Sem esculacho, vem com a gente.” Os bandidos seguiram por uma estrada que desemboca na Rua Javatá, no Chapadão. Quando A. tentou um desvio, dois motoqueiros apareceram e mandaram que ele continuasse em frente. A tentativa de fuga poderia custar caro quando chegassem ao morro. O caminhoneiro viu, então, uma viatura da PM e decidiu arriscar. Girou o volante, jogou a carreta na direção dos policiais e ficou atravessado na pista. Os PMs trocaram tiros com bandidos, enquanto A. se protegia na cabine do caminhão como podia. Pai de dois filhos, escapou sem ferimentos, mas pensa em deixar a profissão. Os bandidos escaparam para o Chapadão.
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De acordo com estimativas do setor, 25% dos casos de roubo de cargas no Rio têm alguma relação com os complexos do Chapadão e da Pedreira. Desde que esse tipo de crime começou a ser medido, em 1992, a situação jamais foi tão grave quanto agora. Em 2016, houve 9.862 ocorrências do tipo no estado. Em termos proporcionais, o Rio de Janeiro lidera com folga o ranking nacional. Foram registradas no estado 60 infrações desse tipo para cada grupo de 100 mil habitantes. Em segundo lugar está São Paulo, com um terço da média fluminense, ou seja, 22 casos. As projeções apontam para um aumento de 5% neste ano. No primeiro semestre, em média 28 veículos de carga foram roubados diariamente no estado.
A região facilita a ação dos bandidos porque fica numa área limítrofe com a Baixada Fluminense e de fácil conexão a vias muito movimentadas, como a Avenida Brasil, principal acesso rodoviário à cidade, a Via Dutra, que faz a ligação com São Paulo, e a Rodovia Washington Luís, que atravessa a Baixada e é caminho para a Região Serrana. Apesar de as transportadoras usarem sistema de monitoramento dos veículos e, muitas vezes, recorrerem à escolta armada, impedir os roubos é difícil. Não raro o caminhão é interceptado a dezenas de quilômetros da cidade e levado para o Chapadão, o Complexo de Lins ou da Maré, sem maiores riscos para os criminosos. O descaramento não tem limites. Há relatos de caminhoneiros rendidos que tiveram de entrar numa fila de veículos no Chapadão, esperando sua vez de ser descarregado. No organograma do tráfico, ao lado do gerente da boca de fumo, existe agora a figura do gerente do roubo de cargas, cuja função é cuidar dessa logística.
Na ação da abordagem às vítimas, os bandidos costumam usar um aparelho portátil que interfere nos sinais de GPS, tornando o veículo incomunicável e sem possibilidade de ser rastreado. Esse voo cego é um ingrediente a mais de tensão, mas as empresas de transporte de carga também têm suas artimanhas. Uma conversa obtida por ÉPOCA, que envolve dois criminosos, um motorista e o responsável pelo monitoramento, mostra o que aconteceu quando a empresa usou o GPS para travar o veículo. “Mano, desbloqueia a 132 aí logo, está escutando?”, diz o bandido, ao ordenar que o caminhão volte a rodar. “Pelo amor de Deus, libera meu motorista. A gente está mandando o sinal de desbloqueio”, diz o supervisor de segurança. Dono da situação, o bandido pressiona constantemente: “Mano, vocês vão chamar a polícia, e a polícia não vai vir aqui. Vocês vão perder um funcionário”. O bandido atira e coloca o motorista, chorando, para falar. “Pera aí, cara, não faz isso, não, pelo amor de Deus.” A empresa enviou o código, o veículo foi desbloqueado e o motorista escapou incólume. Traumatizado, ele não voltou a trabalhar.
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O sequestro aconteceu na madrugada de 29 de julho, na Linha Amarela, uma das principais vias expressas cariocas. Na véspera, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, anunciou o início de um mutirão de forças de segurança nacional e estadual para reprimir o roubo de cargas e o tráfico de drogas. Mas o turno da tropa termina às 17 horas. “Esse planejamento atual é insustentável a médio e longo prazo. O criminoso não é burro, ele sabe o momento em que tem de se retrair, para depois voltar”, diz o coronel Robson Rodrigues. “É preciso ajustar a gestão.” Uma das novidades da temporada é a expansão da área de atuação dos bandidos. Os municípios de São José do Vale do Rio Preto e Sumidouro, na Serra Fluminense, não haviam registrado um caso sequer de roubo de cargas até 2016. No primeiro semestre deste ano, no entanto, tiveram 22 ocorrências cada um.
Acompanhada do major Márcio Alexandre e de três policiais militares, ÉPOCA percorreu ruas dos complexos do Chapadão e da Pedreira. A incursão só foi possível porque, desde maio, o batalhão mantém homens no alto dos complexos com dois blindados, os Caveirões. Logo no início do percurso, na entrada da Pedreira, uma carreta congestiona o trânsito confuso na Estrada de Botafogo, uma das principais vias da região. O motorista, perdido, pede informações para ir para Goiânia, em Goiás. Os olheiros do tráfico espreitam a presa, mas com a polícia perto não ousam agir. As barreiras na entrada de uma rua à frente detêm a viatura da PM, então os policiais sobem a pé pela Rua Darwin Brandão. É preciso correr porque ali fica a divisa com a favela da Lagartixa, uma das comunidades da Pedreira, onde não há reforço policial. Os tiros podem vir a qualquer momento.
Alguns metros adiante há um caminhão estacionado. Ao conferir a placa, os policiais têm a certeza: é roubado. Dois garotos que passam numa moto se veem na mira do fuzil de um PM. Levantam a camisa para mostrar que não estão armados. Além das marcas de bala, os muros à volta têm pichações com nomes de bandidos e facções. No alto da Pedreira, o blindado da PM está parado ao lado de dois veículos Hyundai HB20, o carro preferido dos traficantes. Foram roubados recentemente. A vista do topo do morro permite ver um largo onde caminhões roubados têm as cargas depenadas.
O mais impressionante, porém, fica a alguns quilômetros dali, no fundo do Complexo da Pedreira, numa localidade conhecida como Quitanda. Parece que uma bomba abriu uma clareira em meio a barracos de madeira caindo aos pedaços. Nessa área de mato queimado, lama e córregos de esgoto, funciona um desmanche de carros e carretas, como indicam carcaças, peças e uma carroceria espalhadas. Os traficantes fugiram para outros esconderijos enquanto a polícia fazia uma varredura no morro. Um idoso dorme na porta de um barraco abarrotado de peças de desmontes. Na quinta-feira passada, numa casa próxima dali, a PM prendeu o gerente de roubo de carga da Pedreira. Thiago Rodrigues da Silva, o TH, estava com radiocomunicador, um fuzil e uma granada, mas não reagiu.
Menos íngreme que boa parte das favelas do Rio de Janeiro, o Complexo do Chapadão também abriga desmanches de veículos, mas com uma particularidade que deixou perplexos até os policiais. Alguns barracos estão cheios até o teto de peças de carros roubados. “É uma autopeças do crime”, diz um policial. Uma delas funciona na Rua Javatá, de acesso ao Chapadão. Partindo dali, um beco leva a dois depósitos próximos. Um deles abriga mais de 30 motores, a mesma quantidade de caixas de marchas, escapamentos, para-lamas e kit air bag. A PM aguarda que a Polícia Civil remova o material e abra uma investigação para identificar os veículos. As peças vêm de um desmanche localizado a menos de 100 metros. Ali estão oito carros, alguns já retalhados. O policial encontra uma serra usada para o corte de latarias. “Tem de dar um jeito nisso”, murmura de cabeça baixa uma moça que passa perto. A discrição faz sentido. Das janelas de barracos, olheiros do tráfico observam. Os policiais sabem que eles estão por ali, e eles sabem que a PM deixará o morro à noite, por falta de efetivo. O 41o Batalhão, localizado na região, precisaria de 1.320 homens, mas conta com apenas 318 nas ruas. Mais acima do desmanche, já de volta à Rua Javatá, os policiais encontram um banco de carro encostado em tijolos. Ao lado, o vento folheia uma Bíblia largada. Na parede ao fundo, está a sigla do Comando Vermelho. Normalmente ali fica confortavelmente um soldado do tráfico armado com fuzil – que voltará assim que a polícia sair.
Chapadão e Pedreira se tornaram uma fortaleza de traficantes e de assaltantes. Como todo bunker, os complexos precisam de barreiras de proteção para impedir ou, no mínimo, dificultar a entrada da polícia e precisam de armas pesadas para enfrentar a polícia e a facção rival. Em pouco mais de um ano, a polícia apreendeu por ali 85 fuzis, 290 pistolas, 104 bananas de dinamite e 65 granadas, além de 5.100 balas de vários calibres. Mais armas significam mais confrontos e mortes. O número de homicídios no Rio de Janeiro cresceu 14% no primeiro semestre deste ano, em comparação ao mesmo período de 2016. Nas áreas do Chapadão e Pedreira, no entanto, o crescimento foi de 50%. Diariamente, policiais e criminosos se enfrentam. Buracos de grossos calibres se espalham por paredes, janelas, postes, muros e também nas viaturas. Em março, durante tiroteio no Complexo de Acari, vizinho ao Complexo Pedreira, a menina Maria Eduarda, de 13 anos, morreu ao ser atingida quatro vezes no pátio de sua escola. Na semana passada, se tornaram réus um cabo e um sargento da PM acusados de matar a estudante e executar um bandido caído no chão na frente do colégio. Depois desse episódio, bandidos passaram a vender cargas roubadas atrás da escola. Acreditam que a PM evita fazer novas ações no local devido à revolta dos moradores.
O roubo de cargas que impulsiona os dois complexos de favelas não deixa de ter algo de loteria. Rouba-se muito e de tudo. Ficou para trás o tempo em que os aparelhos eletroeletrônicos eram o maná dos piratas do asfalto. De uns tempos para cá, tornaram-se muito atraentes produtos alimentícios, farmacêuticos, bebidas e cigarros, pela facilidade de distribuição que propiciam. Em questão de minutos, o material roubado pode ir parar em feiras, ambulantes, lojas, biroscas, mas não só. “O volume do que é roubado indica que há receptadores de grande porte e que a mercadoria não é vendida apenas no entorno da comunidade”, diz o empresário Sérgio Duarte, presidente do Sindicato das Indústrias de Alimentos do Rio. Dez caminhões de Duarte, dono de uma empresa de cereais, foram interceptados neste ano. Para reforçar a suspeita da existência de um esquema mais encorpado, há cerca de um mês o sistema de segurança de uma empresa rastreou uma carga de celulares e notebooks roubada e viu que ela havia sido levada para o Complexo da Maré, à margem da Baía de Guanabara. Na sequência, parte do material foi parar em São Paulo e Fortaleza. “O roubo de cargas é menos arriscado e mais rentável que o tráfico. É ele que financia a compra de armas e drogas”, afirma o economista Riley Rodrigues, da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). Segundo cálculo da entidade, o prejuízo com o roubo de cargas no Rio de Janeiro atingiu R$ 619 milhões no ano passado. Empresário do setor há 30 anos, Donizeti Pereira viu 15 carretas suas ser levadas para o Chapadão neste ano. Conseguiu reaver os caminhões e as cargas, que não interessavam aos bandidos: pneus e minérios de ferro e aço. Mesmo assim, ele estima um prejuízo de 20% do faturamento com gastos em segurança. “Estamos vivendo aqui uma Colômbia dos anos 1980, algo comparável a Iraque e Afeganistão”, diz.
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