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Precisamos falar sobre o luto

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Chovia e ventava forte quando cheguei a Veneza para a Biennale. À tarde, o sol abriu e se derramou sobre os canais, as pontes, as gôndolas, os varais coloridos. A Piazza San Marco, ainda úmida, brilhava. Começava ali uma viagem programada há tempos, com meu filho caçula, em busca de sua família italiana. Iríamos de trem e carro a Verona, Cinque Terre, Toscana, Florença e Bolonha.

À noite, recebi uma mensagem de voz da médica de meu pai, “a santa Patrícia”, como ele a chamava. “Teu pai não deve viver até o fim do mês.” Foi um soco. Inesperado. Tentei falar com ele. Liguei para seu celular. Sem resposta. Para a cuidadora do dia. Sem resposta. Para a Clínica da Gávea, onde ele morava havia três anos e meio, cercado de amigos. Pedi o ramal da enfermagem. Liguei para seu telefone fixo. A doutora Patrícia atendeu. Eu sentia que precisava dizer uma coisa a ele. Ela colocou o telefone em seu ouvido. 

“Quero dizer que eu te amo, pai.” “Eu também te amo muito, minha filha.” A voz estava emocionada, e ouvi o som de beijos e mais beijos dele. Busquei passagens para voltar. Cinquenta minutos depois, a doutora Patrícia me liga: “O Hélio descansou.” Eu vivia o sentimento surreal do luto à distância. À dor, se soma a incredulidade. Quando saí do Brasil para a Europa, há duas semanas, ele convivia com um problema renal e se dizia “o galã da Clínica”, com várias “namoradas”. Minha preocupação era o áudio de seu computador. O conforto da poltrona e do novo colchão.

Dei graças por seguir minha intuição. A última declaração de amor mútuo me ajudou e me ajudará pelo resto da vida a lidar com a perda de meu pai. Papai morreu. E, quando alguém tão próximo morre, todo o resto perde o sentido. Olhamos em volta, mas não enxergamos nada. Saindo de Veneza, a excitação dos turistas me alcançava em ondas longínquas. Porque o luto é um olhar para dentro e para as lembranças. Nos últimos anos, papai foi uma presença diária, ele não me deixava esquecer de que precisava me ver. Cuidei dele.

Pode-se falar em perda súbita aos 95 anos? Por que nunca estamos preparados para a morte de quem amamos? A lógica aponta para uma celebração. Ver crescer filhos e netos, ver a bisneta, é um privilégio. Uma bênção. Quando mamãe morreu, no domingo de Carnaval de 2015, pensávamos que ele não resistiria muito. Mas Hélio teve reação oposta. Talvez por se sentir liberado dos cuidados com a degeneração da memória de minha mãe.

Hélio era quem mais dançava nas festas, disputava com o hóspede Oswaldo o consumo de cachorro-quente. Dava palestras na Clínica sobre o Barão do Rio Branco ou sobre Vinicius de Moraes. Era o orador, o que só assistia ao canal Arte1, o que discutia balé com a ex-bailarina estoniana Helga. Jogava partidas concorridas de buraco com a vizinha de quarto Alexina, que era apaixonada por ele e também tinha 95 anos. Ela morreu há dez dias. Papai não chegou a saber.

Doou seus CDs de árias. Sabia os nomes dos tenores e sopranos. De todos os tenistas. Era fã do suíço Federer. Rubro-negro doente. Mas pendurou em seu quarto um pôster do Botafogo campeão, porque eu e os netos do Rio de Janeiro somos alvinegros. Indignava-se com a corrupção. Sempre foi um patriota. Seu time do coração era o Brasil. Adorava assistir às escolas de samba. “Minha filha, não existe povo mais criativo que o brasileiro. Não merece os políticos que temos.”

Lia as minhas colunas por internet, antes que a revista chegasse. Assinou ÉPOCA para uma hóspede. Era um leitor superlativo e seu entusiasmo se espalhava sobre tudo. Nos almoços de quarta-feira em minha casa, amava a berinjela à parmigiana da cozinheira Linde. Comia com prazer, como um garoto. “A senhora é a melhor chef do mundo”, dizia. De família gaúcha, de Cruz Alta, a mesma de Erico Verissimo, carne vermelha era sua paixão.

Hélio adoçou com o passar do tempo. As fotos antigas o mostram sério e autoritário, posando como um militar. As recentes revelam um sorriso autêntico e grato. Adorava beijar. Beijava as filhas, os netos, as enfermeiras, a médica, as cuidadoras, as hóspedes na Clínica. Era um sedutor. Todas tiveram o beijo na mão e no rosto, ouviram elogios galantes. Dizia que era “o mais querido de todos”.

Ficava bobo com a bisneta. Não teve tempo de ver o bisneto nascer. Nunca há tempo para tudo. Hélio era muito ansioso. Prematuro de sete meses, não esperou para nascer. Diagnosticado com câncer uma semana depois que saí do Brasil, pensava ter gastrite. Não esperou definhar para morrer. Não despertou do sono da tarde. Fez sua viagem sem volta.

Eu me perdi nos labirintos de Veneza, essa cidade com tantas igrejas e sinos que você sente vontade de ter fé. Perdi meu pai ali. Morri um pouco em Veneza. A vida é um sopro. Às vezes, um longo sopro.

>> Todas as colunas de Ruth de Aquino



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