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Para entender o sentido da liberdade

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Não é de hoje que a obscenidade assombra as artes. No final do século XV, Hieronymus Bosch pintou, no tríptico O jardim das delícias, flores enfiadas em orifícios humanos, vômito e excrementos lançados como alimento a desesperados num poço do inferno. Em 1565, o papa Pio IV convocou Daniele da Volterra para cobrir os nus de Michelangelo na Capela Sistina. Em 1863, Manet chocou Paris com a nudez do Almoço na relva. Em 1916, Picasso foi tachado de imoral por retratar prostitutas em Les demoiselles d’Avignon. Nada do que revoltou os manifestantes na exposição Queermuseu, em Porto Alegre, jamais atingirá o status dessas obras-primas, certo? Mas como saber? Adriana Varejão ou Bia Leite dirão estar em boa companhia ao enfrentar a intolerância. Não se trata de ato isolado. Houve, segundo a ONG sueca Freemuse, ao menos 57 violações à liberdade de artistas plásticos em 2016 – entre 1.028 à expressão artística como um todo, mais que o dobro de 2015. É essencial distinguir censura, perseguição e morte sob regimes autoritários da rusga que, aqui, apenas opõe agendas políticas antagônicas. De um lado, militantes conservadores bradando, qual censores, o que pode ou não ser arte. De outro, militantes de causas “politicamente corretas” apelando ao recurso desgastado de “épater le bourgeois” (“chocar o burguês”, lema dos malditos franceses no século XIX).

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Arte é feita de transgressão, não convive bem com regras, códigos ou leis. Precisa de liberdade – conceito raramente compreendido no Brasil. Ao agredir, pode querer transmitir o sentido contrário ao expresso, como sabe qualquer leitor do semanário satírico Charlie Hebdo. O que para um é ofensa, para outro é crítica, questionamento. É justamente nos casos extremos, vistos como blasfêmia ou obscenidade, que testa a própria liberdade. Que limite deve ser imposto a uma atividade cujo objetivo é, por definição, romper limites? A resposta está num clássico do liberalismo: Sobre a liberdade, escrito pelo filósofo John Stuart Mill há 160 anos. Impossível reproduzir aqui tudo o que ele tem a dizer – lê-lo é essencial. Eis uma tentativa:

1. Pedofilia – É preciso proteger as crianças. “Aqueles que ainda estão em estado de exigir ser cuidados por outros devem ser protegidos contra suas próprias ações e contra ofensas externas”, escreve Mill. Incitar ou disseminar conteúdo pedófilo é um crime repugnante. Mas é ridículo achar que um quadro de Bia Leite levará alguém a cometê-lo – ela própria afirmou tratar-se de uma crítica, incompreendida na leitura literal do público. Nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, nada há de ilegal no quadro dela nem na exposição, dizem dois promotores que a visitaram. Caberia, contudo, um alerta ou classificação indicativa, numa área reunindo obras controversas.

2. Obscenidade – Para Mill, nossos julgamentos são contaminados pela subjetividade e pelo costume do grupo a que pertencemos. “Para o homem comum, sua própria preferência não é apenas uma razão satisfatória, mas a única para suas noções de moralidade, gosto ou decência”, escreve. No conflito entre visões distintas, não há duas sociedades que decidam igual. Na França, o código penal proíbe conteúdo pornográfico, racista, antissemita, que incite violência, terrorismo, atente contra a dignidade ou ponha menores sob risco – mas uma lei de 2016 garante “livre criação artística”. Nos Estados Unidos, uma decisão da Suprema Corte de 1973 estabelece três critérios exigidos para vetar um conteúdo como obsceno, o “teste Miller”. Apresentada às obras mais polêmicas da Queermuseu, a advogada Lata Nott, do Newseum, centro especializado na Primeira Emenda, afirma (com a ressalva óbvia de ser impossível prever o que diria todo juiz): “Nenhuma delas se encaixaria na definição legal de obscenidade”.

3. Papel do Estado – Mill desconfiava da ação do governo na educação e na cultura. “Onde tudo é feito por meio da burocracia, nada daquilo a que a burocracia é adversa pode ser feito”, afirma. Condenaria incentivos para financiar esta ou aquela visão estética. Na dúvida, postulava que o governo deveria sempre proteger a visão minoritária: “Se uma de duas opiniões tem mais direito não apenas a ser tolerada, mas a ser encorajada, é a que sucede estar na minoria. É a que representa os interesses negligenciados, o lado do bem-estar humano em risco de obter menos do que merece”.

4. Blasfêmia –  Ciente de que a essência da liberdade é a discordância, não o ataque, Mill criticava o fanatismo: “Se fosse preciso escolher, há mais necessidade de desencorajar ataques aos infiéis que à religião. É óbvio, porém, que lei e autoridade não devem limitar nenhum deles”. Cita, por fim, dois casos célebres de vítimas da intolerância religiosa. Sócrates, condenado em Atenas como ímpio, imoral e corruptor da juventude. E Jesus Cristo, crucificado em Jerusalém. Por blasfêmia.



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